As duas defesas básicas na contestação na Odontologia, os dois argumentos mais fracos.

André Eduardo Amaral Ribeiro, cirurgião-dentista e perito judicial no TJSP[1]

andreamaralribeiro@hotmail.com

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Escritórios de advocacia com alta demanda em Saúde repetem as mesmas estratégias já desgastadas: abandono do tratamento ou obrigação de meio. Quase nenhum juiz aceita a obrigação de meio na Odontologia. Algumas câmaras até entendem um pouco para este lado, mas ainda insuficientes.

  A contestação fraca se esquece de enumerar os documentos odontológicos que o dentista dispõe antes de qualquer argumento ou tese. Confirme se seu cliente redigiu um prontuário (muitos não fazem, ou fazem num papel de pão, bem esculachado), verifique o termo de consentimento (raridade em São Paulo), as anotações de cada uma das consultas e datas, exames complementares – radiografias. Note que a radiografia pode estar com o paciente ou no banco de dados ou nuvem da clínica de radiologia. O dentista que costuma a pedir radiografias panorâmicas pode acessar todas elas, já o paciente não tem essa facilidade.

Após esse levantamento, a contestação pode ser esboçada. Quando sou contratado para serviços de assistência técnica quer do paciente, quer do dentista requerido, comecemos pela enumeração dos documentos disponíveis em um prontuário odontológico exemplar. Segundo o CFO os documentos mínimos são: 1) anamnese; 2) anotação das consultas; 3) termo de consentimento; 4) plano de tratamento com custos esperados. Sem eles, resta à defesa trabalhar com dois últimos recursos: abandono de tratamento e obrigação de meio. Justamente os que nunca devemos usar como fundamento por sua fraqueza. Pela minha experiência, chegamos a essas duas defesas genéricas quando o dentista não escreveu um prontuário mínimo – o abandono de tratamento é bastante difícil de se comprovar, embora insistam nele.

O abandono de tratamento pode ser útil quando o dentista se habitua a anotar algo como: retorno em sete dias, retorno em agosto de 2025. Nesses casos raros fica mais provável funcionar. Por outro lado, sou o único dentista que anota essas informações, mesmo no ambulatório da Prefeitura, pois tomo este cuidado – jogar a obrigação do retorno sobre o cliente. O paciente se compromissou a voltar em uma semana, se não o fez, estava advertido. Para evitar a prática irreal de colher a assinatura ou rubrica do paciente, eu apenas anoto o nome do auxiliar de consultório que estava comigo naquele dia. A Justiça ainda gosta de testemunhas em audiências, o que já considero obsoleto, pois as câmeras de segurança fazem melhor esse trabalho, com data e hora. Também digo porque conheço uma juíza bastante influente, mas que não confia plenamente nos meus laudos e sempre cria uma audiência com familiares e auxiliares de dentista. Ela não usa filmagens do consultório, prefere as testemunhas clássicas, com a acareação.

Quando estamos realmente perdidos, o último fraco argumento é o de que a Odontologia é um contrato de meio, ou de que o corpo do paciente reage de modos diferentes, que isso, que aquilo… São os casos em que seu cliente dentista perderá a causa. Afirmo com 90% de chances. O mau uso desse argumento se percebe quando o escritório – e conheço dois grandes – que repetem esse argumento e sem ter levantado a documentação em poder do dentista. Usam essas defesas com padrão default para todas as causas em Odontologia porque querem economizar dinheiro com um assistente técnico.

Prova padrão-ouro: radiografias

A melhor forma de começar um ataque ou uma defesa é por exames de imagem: radiografias ou tomografias – são impossíveis de falsificar, são objetivas e estão sempre datadas. Não necessariamente a prova pode ser bilateral – o paciente pode não entender o valor da radiografia que guardou em casa e omiti-la para seu advogado, sem saber o valor dela. Mas acredite em mim: são as melhores provas para atacar. Por meio de uma radiografia panorâmica, um assistente técnico pode montar uma tese forte.

Omissão do prontuário: coisa do passado.

Um escritório em Curitiba me contratou para um caso em que a dentista se recusava a entregar o prontuário. A advogada da paciente já se atrapalhou e pediu aqueles mandados para se entregar ao oficial de Justiça. Na verdade, ninguém pode se recusar a entregar um prontuário. Se escrito em papel, uma foto de celular das páginas pode resolver o problema. Se um prontuário digital, um arquivo PDF pequeno pode comportar todo o histórico de tratamento de um paciente. Não há mais justificativas para essas omissões. De qualquer forma, essa advogada de Curitiba aguardou a apresentação do prontuário antes de esboçar sua tese de ataque sobre um tratamento ortodôntico de uma adolescente, que supostamente a teria abalado quatro dentes anteriores.  Ela agiu com critério. Contratou um assistente para avaliar a viabilidade do processo – e de fato havia a conhecida reabsorção radicular pós-ortodontia. Era um argumento poderosíssimo contra a dentista irresponsável. Quando recebemos uma cópia do prontuário, as anotações se resumiam a data da consulta e alguns números que indicaram o fio ortodôntico usado. Assim se repetiu por dois anos, sem qualquer orientação sobre higiene bucal, sem qualquer radiografia de controle. Vejam a literatura que um escritório jamais poderá acessar sem um assistente técnico:

A literatura[2] já especificou o problema.

A importância das reabsorções dentárias na prática clínica diária está relacionada com as seguintes razões:

  1. Têm frequência significante, constituindo-se em causa comum de perda dentária.
  2. Constituem problemas clínicos de diagnóstico e tratamento; às vezes, suas causas são difíceis de serem identificadas e determinadas com precisão e segurança, dificultando o prognóstico.
  3. Estão implicadas no processo de reparo pós-operatório das estruturas periodontais, quer sejam laterais quer apicais.
  4. São fundamentais no processo de rizólise dos dentes decíduos.
  5. Têm um significante valor semiológico no diagnóstico de lesões císticas e tumorais, como por exemplo, na distinção entre um queratocisto odontogênico e um ameloblastoma.
  6. Caracterizam-se como consequências e complicações de determinadas situações clínicas:

Traumatismos com ou sem fraturas dentárias, em consequência do processo inflamatório ou da aquilose alveolodentária a serem estabelecidos.

Fraturas dentárias: dificultando ou impedidnto sua consolidação.

Reimplantes dentários por causas acidentes e intencionais.

Lesões periapicais inflamatórias crônicas, especialmente os granulomas periapicais.

Movimentação dentária induzida.

A economia não valeria a pena, sem um assistente técnico, esse conceito de reabsorção dentária não é aplicável por advogados que costumam usar trechos de outros processos semelhantes. Até é uma tentativa, mas o ideal é custear a assistência técnica.

A conclusão desse caso em Curitiba – duas semanas após o protocolo da petição inicial na vara cível, um acordo de R$ 60.000,00 foi assinado. Opinei que era bastante vantajoso, pois a mãe da adolescente acreditava em uma indenização de cem mil reais, ao qual consegui dissuadi-la desse dinheiro. Considero um exemplo perfeito de bom trabalho advocatício – calma, sem pular etapas, aguardar o prontuário e fugir das teses básicas de contrato de meio na Odontologia, ou abandono do tratamento. E o curioso, o prontuário parecia falso ou fabricado, o que é bastante difícil de se fazer. Na verdade, consegui provar que um prontuário era falsificado numa divergência em datas: a compra do antibiótico era anterior à data da receita. Foi sorte, pois percebi sem querer.

Falta do uso de medicamentos ou contrato de meio?

Outro argumento fraco é a falta de consumo de antibióticos para justificar uma infecção. As infecções pós-operatórias costumam acontecer em até seis porcento dos casos. Mesmo com a técnica cirúrgica ou ambulatorial perfeita, ela pode acontecer. Neste caso, entendo que a teoria de contrato de meio pode ser aplicada. Na literatura[3]:

Princípios de profilaxia da infecção de feridas

Infecções pós-operatórias ocorrem em cerca de 6 a 9% das cirurgias limpas e contaminadas (p. ex., na cavidade bucal) e chegam a 40% em procedimentos envolvendo feridas sujas. Os antibióticos perioperatórios podem reduzir a taxa de infecção em cerca de 3,3% e, especificamente para a cirurgia bucomaxilofacial, em 70%. No entanto, o dentista deve interpretar os dados com cautela. Em primeiro lugar, a incidência de infecção após procedimentos cirúrgicos bucais é muito baixa. Na verdade, as taxas são comparáveis com a frequência de reações alérgicas decorrentes do uso de antibióticos. Em segundo lugar, as infecções do sítio cirúrgico após a cirurgia bucal de rotina são menores e respondem prontamente aos antibióticos ou procedimentos secundários, como incisão intraoral e drenagem em consultório. As análises sistemáticas de estudos clínicos sobre os procedimentos cirúrgicos bucais não conseguiram identificar quaisquer infecções pós-operatórias do espaço profundo da região da cabeça e do pescoço. Os benefícios da prescrição de rotina de antibióticos antes de cada procedimento de cirurgia bucal (redução na já baixa incidência de infecções leves do sítio cirúrgico) não justificam o aumento do risco de reações adversas a antibióticos, o aumento do risco de selecionar bactérias resistentes aos antibióticos e o ônus financeiro para o paciente e o sistema de saúde. Portanto, recomendam-se os antibióticos pré-operatórios apenas em circunstâncias selecionadas, como procedimentos cirúrgicos longos e pacientes com as defesas do hospedeiro comprometidas. Períodos operatórios mais longos demonstraram aumentar o risco de infecções no sítio cirúrgico, e isso tem sido demonstrado em vários estudos e análises sistemáticas com metanálises, que confirmaram uma associação consistente entre o aumento dos períodos operatórios e a ocorrência de infecções do sítio cirúrgico. Embora a maioria das cirurgias bucais seja curta, os antibióticos pré-operatórios podem ser contemplados em procedimentos longos e complicados (p. ex., alveoloplastia extensa com colocação de múltiplos implantes dentários e enxertos ósseos).

Então, um trecho com esse pode dar munição tanto para o requerente quanto ao requerido sobre o tema comum das infecções pós-operatórias. Um caso em Santos, no qual fui o perito, foi exatamente esse. O dentista se defendeu argumentando que a paciente não havia comprovado a compra do medicamento, pois não havia nota fiscal de compra da farmácia ou não havia o carimbo de aviamento da medicação, caso houvesse retirado o antibiótico no SUS. A paciente autora reclamava de uma infecção pós-operatória, até que feia. Se o caso fosse julgado no estado em que se encontrava, ou seja, sem a perícia, talvez a autora ganhasse a causa. Após a perícia, a questão de não ter comprovado a obtenção do antibiótico ganhou força. Embora as fotos nos autos pudessem impressionar um juiz de direito, dada a imagem de uma grande área vermelha no queixo da paciente, isso não significa muito para o cirurgião. Pode acontecer. Basta saber orientar sua tese e embasar com alguma literatura – não vejo melhor trecho do que o que coloquei acima – um livro referência internacional em Cirurgia Bucal que indicava uma porcentagem de falhas na antibioticoterapia, indicando que mesmo com a técnica perfeita, a infecção poderia acontecer.

Antes de elaborar teses, levante o prontuário e enumere as provas, com a preferência para os exames de imagem. Não tem como errar.

São Paulo, 14 de setembro de 2025

(assinatura digital)


[1] Soma 326 nomeações até setembro de 2025.

[2] CONSOLARO, Reabsorções Dentárias nas Práticas Clínicas, Alberto Consolaro, 3ª edição, Editora Dental Press, 2002, p. 20-21.

[3] HUPP, Princípios de Cirurgia Oral e Maxilofacial, sétima edição, Ed. Guanabara Koogan, 2021, p. 1050:

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